O dom da fé na visão de um calvinista e de um arminiano

March 31, 2023

Eu não costumo basear meus estudos em teólogos, mas farei uma exceção neste texto para abordar a relevante questão do dom da fé, que é considerada um importante ponto de divergência entre calvinistas e arminianos.

Que a fé é um dom é inegável na palavra de Deus. Ao mesmo tempo, há inúmeras passagens em que somos exortados a ter fé, como se crer ou não crer fosse uma escolha nossa. Uma forma muito satisfatória de conciliar esses textos é apresentada pelo teólogo arminiano Adam Clarke em seu comentário sobre a Epístola aos Hebreus.

Não é dom de Deus a fé? Sim, quanto à graça pela qual é produzida; mas a graça ou poder para crer e o ato de crer são duas coisas diferentes. Sem a graça ou poder para crer, ninguém jamais creu nem pôde crer; mas com esse poder o ato de fé é do próprio homem. Deus nunca crê em lugar de ninguém; tampouco se arrepende por alguém. O penitente, mediante o poder desta graça, crê por si mesmo. E não é que creia necessária ou impulsivamente quando tem o poder; este pode estar presente muito antes de ser exercitado. Do contrário, por que as solenes advertências com que nos deparamos ao longo de toda a Palavra de Deus e as ameaças contra os que não crêem? Não é isto prova de que tais pessoas têm o poder mas não o usam?

Nesta questão do dom da fé, meu modo de interpretação sempre esteve alinhado ao de Clarke e eu pensava que os teólogos calvinistas eram contrários a esse entendimento. No entanto, encontrei por acaso uma visão muito semelhante à de Clarke nas palavras de um dos meus teólogos favoritos, Martin Lloyd-Jones, que é considerado calvinista. Em um sermão transcrito no livro ‘Depressão Espiritual’, Lloyd-Jones apresenta essa visão.

Trata-se de um sermão intitulado ‘Onde está a sua fé?’, que tem como base o texto bíblico em que os discípulos enfrentam uma tempestade no mar enquanto Jesus dorme. Mais especificamente, o sermão se baseia na pergunta que Jesus faz aos discípulos quando eles o acordam desesperados. A partir dessa indagação de Jesus (‘Onde está a sua fé?’), Jones apresenta importantes considerações.

[…] O que é fé? Vamos examiná-la de forma positiva. O princípio ensinado aqui é que fé é uma atividade, é algo que precisa ser exercitado. Não entra em operação por si mesma, nós precisamos exercitá-la. É uma forma de atividade. Quero dividir isso um pouco. Fé é algo que precisamos colocar em ação. Isso é exatamente o que o Senhor disse a esses homens. Ele disse: “Onde está a vossa fé?”, o que significa: “Por que não estão tomando a sua fé e aplicando-a a esta situação?” Pois foi porque eles não fizeram isso, foi porque não colocaram sua fé em ação, que os discípulos se desesperaram e ficaram nesse estado de consternação.

Aqui temos, em essência, dois renomados teólogos de duas vertentes opostas que pensam de forma muito semelhante nesse tema tão controverso. Ou seja, ambos afirmam que a fé é um dom dado por Deus, que podemos ou não exercitar. Como já mencionei, esse é também o meu modo de pensar a respeito, e fico feliz em ter tão boas companhias nessa reflexão.