Uma critica totalmemte pessoal sobre o livro Deus e a pandemia (N. T. Wright)

August 17, 2020

Segundo o autor, associar os desastres a ira dos deuses era uma prática do mundo antigo e associar o vírus à ira de Deus, a partir dos profetas do Antigo Testamento, não passa de uma nova versão daquelas antigas teorias pagãs.

Para partir de algum lugar, ele cita o forte texto de Amós: “Ocorre alguma desgraça na cidade, sem que o Senhor a tenha mandado?” A ideia é: A desgraça é mandada para levar o povo ao arrependimento.

Isto é particularmente verdade, segundo o autor, na grande desgraça que foi o exílio para a Babilônia (conforme os escritos dos profetas), no entanto, existem contrapontos:

  • Ninguém jamais disse que a tragédia da escravidão de Israel no Egito resultou do pecado [um argumento e tanto];
  • Quando a fome se abateu sobre a terra na época de José, a família de Jacó não atribui essa desgraça ao pecado [no entanto, o salmo 105 assegura que foi Deus mandou esta fome, algo que desconstrói em parte a narrativa do autor];
  • de igual modo, quando a fome sobreveio na época dos apóstolos, os cristãos não alegaram se tratar de um sinal escatológico ou um chamado ao arrependimento.

Isto para não citar o clássico argumento de Jó, ao qual o autor também recorre. Tudo para mostrar, corretamente, que as desgraças, biblicamente, nem sempre são por causa dos pecados das vítimas.

Como se vê, são todos argumentos válidos e muito bem elaborados. No entanto, há outros raciocínios adotados pelo autor que me incomodaram bastante, os quais exponho a seguir.

Me incomodou a postura de superioridade do autor diante de salmos, digamos, mais “triunfalistas”, como o bem conhecido: “Nunca vi um justo desamparado, nem a sua descendência mendigar o pão”.

"Nós o vimos [o justo] desamparado”, diz o autor. “Talvez devêssemos permitir ao salmista o benefício da dúvida: o poeta está descrevendo tempos normais. (…) Mas não vivemos em tempos normais (talvez nunca realmente tenhamos vivido).” Para mim, isto não é apenas má interpretação, é também arrogância.

O autor parece ter predileção por salmos que trazem o que ele chama de uma “perspectiva mais equilibrada” (o que também me soa arrogante), deste modo ele passa bem longe de salmos com perspectivas “menos equilibradas” como o 91 com o seu “praga nenhuma chegará à sua tenda” [que eu particularmente gostaria de vê-lo abordar].

Passemos agora ao Novo Testamento, onde discordo da abordagem do autor do episódio da queda da torre, que matou dezoito pessoas. Obviamente esse episódio não é do interesse do autor, por contradizer o seu ponto.

Nele, Jesus responde uma questão crucial, que surge em tempos de calamidades. Os que morrem em episódios como esse, da queda da torre, são mais pecadores que os demais? [aparentemente esta dúvida pairava no ar] Não, responde Jesus: “Se não se arrependerem, todos vocês também perecerão”.

Segundo o autor, esses “avisos diziam respeito à destruição iminente de Jerusalém. A menos que o povo mudasse drasticamente sua conduta, a espada romana e outras catástrofes acabariam com a maioria deles”. Isto não significa, ao meu ver, que o princípio não se aplique a qualquer outra tragédia, como à presente pandemia, por exemplo.

No entanto, um Jesus que profere essas palavras não é do interesse do autor. “Jesus parece viver na intersecção dos tempos”, diz ele. “Às vezes, falava e agia como um profeta do Antigo Testamento — e as pessoas diziam que ele lhes lembrava Jeremias ou Elias, resultando disso uma imagem diferente da imagem padrão de Jesus como ‘manso e tranquilo’”.

Ele atribui a este Jesus “profeta do Antigo Testamento” àquela severa advertência: “Não volte a pecar, para que algo pior não lhe aconteça”. Segundo o autor, “outras vezes, porém, [Jesus] parece olhar, não para trás, para pecados que podem levar a julgamento, mas para a nova obra que estava acontecendo: o reino de Deus.”

O autor atribui a este Jesus “manso e humilde” a resposta dada no caso do homem cego de nascença. “Nem ele nem seus pais pecaram”, disse Jesus. “Isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele.” Para o autor, este é o Jesus para os nossos dias [que não especula sobre pecados passados].

Neste ponto do livro, eu digo para mim mesmo: se ao menos pudéssemos dizer, com base neste Jesus, que a pandemia veio para que a glória de Deus se manifestasse de forma sobrenatural, como na vida daquele cego! Ah se pudéssemos curar alguns, como Jesus curou!

No entanto eu temo que para que este Jesus se manifeste, primeiro teremos que enfrentar aquele outro, o temido profeta do Antigo Testamento, que nos confronta em nossos pecados, particularmente aquele terrível pecado que o apóstolo Tiago [que também parece profeta do Antigo Testamento] chama de dipsychos.

Este é o mal que nos impede de impor as mãos sobre os enfermos e eles sararem. “Você de mente dobre (dipsychos), purifiquem o coração. Entristeçam-se, lamentem-se e chorem. Troquem o riso por lamento e a alegria por tristeza.” Este é um chamado ao arrependimento para nós, nada diferente do Antigo Testamento.

“Assim como o pai me enviou, eu os envio”, disse Jesus. O autor navega na direção certa quando diz que esta passagem significa que, como Jesus esteve em Israel, nós devemos estar no mundo, mas chega ao porto errado quando esvazia o nosso ministério do elemento sobrenatural.

Para tanto, o autor precisa ignorar o elemento sobrenatural por trás da maioria dos exemplos bíblicos que utiliza. Notem que José, no Antigo Testamento, e Ágabo, no Novo Testamento, previram profeticamente a fome, um fator que permitiu o planejamento de estratégias com antecedência (a igreja moderna, contudo, foi pega totalmente de surpresa com a pandemia).

Dado os dons espirituais de que dispunham, eles não precisavam especular, como nos estamos fazendo, se a desgraça era ou não um juízo de Deus ou um chamado ao arrependimento. Se fosse, eles certamente saberiam, porque Deus lhes teria dito.

No caso de Jó, apesar dos três amigos sem discernimento, houve um outro que o confrontou corretamente, inspirado sobre o Espírito Santo. No caso de Lázaro, em que Jesus chorou, ele não apenas chorou, ele também o ressuscitou e transformou o choro em alegria. Tire o elemento sobrenatural da bíblia, e você tem um livro; tire da igreja, e sobra um instituição inócua.

O autor faz toda uma dissertação para sustentar que a pandemia não é juízo de Deus, mas a verdade é que não dá para saber com certeza, algo que ele tem a humildade de reconhecer. No entanto, a partir desse pressuposto, o autor caminha para um tipo de aceitação da dúvida.

Segundo ele “o chamado do seguidor de Jesus, à medida que enfrenta as próprias dúvidas e as indagações de um mundo em lágrimas e por trás de portas trancadas, é o de servir, ele próprio, de sinal para o reino de Deus [ajudando como puder].”

Sendo bem sincero, o livro me causou um tremendo incômodo, por ser um retrato melancólico da igreja dos dias atuais. Por trás da erudição das palavras, não nos sobrou muito a oferecer ao mundo neste momento, a não a nossa ajuda tardia para fazer o que outros já estão fazendo.

Que o Senhor tenha misericórdia de nós!


Gostaria de recomendar meu livro, um romance emocionante e divertido com pano de fundo cristão, que aborda questões como relacionamento pais e filhos, primeiro amor e segundas chances.