Um estudo sobre o texto de Tiago
Em sua carta, o apóstolo Tiago nos apresenta a sua tese de que uma pessoa é justificada por obras, e não apenas pela fé. Esta posição parece contradizer a posição teológica do apóstolo Paulo, cujo proposição é a de que Deus justifica pela fé, independente de obras (Rm 3:28; 4:6). O que ocorre, na verdade, é que Paulo e Tiago estão falando de tipos distintos de obras. Paulo está falando de obras da Lei (ou obras de justiça), enquanto Tiago fala de obras da fé.
Notem que a Bíblia fala a respeito da inutilidade não apenas da fé sem obras, mas também do arrependimento sem obras e do amor sem obras. O que são obras de arrependimento, de amor ou de fé, senão atitudes externas que demonstram esses “sentimentos” [1] internos? Amor, fé e arrependimento são “sentimentos” distintos, mas muitas vezes as obras podem ser as mesmas.
Ajudar o próximo, por exemplo, é uma obra que demonstra amor, mas pode demonstrar também arrependimento ou fé, ou as três coisas ao mesmo tempo. Contudo, conforme veremos no texto de Tiago, esta ação só teria valor para justificação enquanto obra da fé (como uma demonstração da fé). Tomada como obra de justiça, deveria ser considerado como esterco, a exemplo do apóstolo Paulo.
Tiago começa seu argumento perguntando: “De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé [sem obras] pode salvá-lo?” Ele pretende opor-se, neste texto, a certas pessoas que alegavam ter fé, mas cuja fé não se manifestavam em obras, talvez escusados por uma má interpretação da teologia paulina. Ele questiona a eficácia deste tipo de fé sem obras, no que diz respeito à salvação.
Na sequência, ele passa ilustrar a que se compara esta fé sem obras. “Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta.”
Muitos intérpretes consideram esta falta de ajuda efetiva ao irmão como um exemplo de fé sem obras. Não me parece ser o caso. Quando o apóstolo diz “assim também a fé”, fica claro que ele está comparando a fé sem obras com outra coisa, e não dando um exemplo de fé sem obras. A rigor, a situação exposta está mais para amor sem obras do que fé sem obras.
O apóstolo João aborda esta questão do amor sem obras, quando diz: “Não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em verdade.” Basicamente, é o que está ocorrendo aqui. Este homem recebe o irmão necessitado de roupas e alimento e o manda embora apenas com palavras vazias e incoerentes, que só fariam sentido se ele lhe tivesse dado roupas e alimentos.
“Mas alguém dirá: ‘Você tem fé; eu tenho obras’. Mostre-me a sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras”, prossegue Tiago. Neste ponto, o apóstolo faz um parêntese para deixar claro que embora o seu discurso seja contra os que dizem ter fé, sem obras, isto não o coloca do lado oposto, dos partidários das obras, sem fé. O apóstolo cuida de ressaltar que se por um lado é impossível mostrar a fé sem obras, por outro lado as obras só tem valor para salvação como evidência da fé (nesse sentido, as obras compõem e integram a fé). Ainda é a fé que salva, mas a fé deve ser acompanhadas e demonstradas pelas obras.
Após o parêntese anterior, o apóstolo retoma a questão inicial, das pessoas que dizem ter fé, sem obras .“Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios creem — e tremem!”, diz ele. Seu argumento agora é contundente e constrangedor. Para o apóstolo, não há nenhum mérito em apenas crer em Deus, se isso não for seguido de obras correspondentes. De igual modo, não há nenhum mérito em confessar Jesus como Senhor, sem sujeitar-se a ele. Se apenas crer fosse suficiente, os demônios seriam salvos. Eles sabem quem Deus é, eles tremem de medo diante dele, mas continuam sendo demônios. Falta-lhes justamente as obras da fé, que se revela na sujeição e no comportamento.
“Insensato! Quer certificar-se de que a fé sem obras é inútil? Não foi Abraão, nosso antepassado, justificado por obras, quando ofereceu seu filho Isaque sobre o altar?” Oferecer Isaque em sacrifício é uma daquelas obras que podem confundir, porque tanto pode ser considerado uma obra de obediência ou justiça, como também uma obra de fé. De fato, o autor de Hebreus destaca não a obediência mas a fé de Abraão, quando escreve “pela fé Abraão, quando Deus o pôs à prova, ofereceu Isaque como sacrifício.”
“Você pode ver que tanto a fé como as obras estavam atuando juntas, e a fé foi aperfeiçoada pelas obras. Cumpriu-se assim a Escritura que diz: ‘Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça’, e ele foi chamado amigo de Deus.” Embora a obra de Abraão possa ser considerada um ato de justiça, o seu verdadeiro valor está em ser um ato de fé e como tal é recebido por Deus. Se fosse recebida como um ato de justiça, não serviria para justificar Abraão (e não passaria de excremento), mas como uma obra de fé, ela contribui para a justificação de Abraão. Abraão creu em Deus quando sacrificou seu filho e porque sacrificou o seu filho.
Nesta ponto, Tiago nos apresenta sua tese: “Vejam que uma pessoa é justificada por obras, e não apenas pela fé.” Se Abraão não tivesse oferecido Isaque, seria não apenas um ato de desobediência, mas também de incredulidade. a fé não tem valor algum, se não se manifestar por meio de obras. É tão inútil quanto o amor sem obras, ou o arrependimento sem obras. No fim, são as nossas obras que revelam a nossa fé ou a nossa incredulidade, porque é pelos frutos que se conhece a árvore.
“Caso semelhante é o de Raabe, a prostituta: não foi ela justificada pelas obras, quando acolheu os espias e os fez sair por outro caminho?” Que a obra de Raabe foi uma obra de fé, mais do que de caridade, fica claro também no livro de Hebreus, quando diz que “pela fé a prostituta Raabe, por ter acolhido os espiões, não foi morta com os que haviam sido desobedientes”. Ela fez o que fez não apenas como um ato de bondade, mas principalmente como um ato de fé no Deus de Israel. A exemplo de Abraão, a fé de Raabe representou um grande risco para ela, mas mesmo assim ela creu; e creu por meio do risco que correu com suas ações.
“Assim como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta.” Talvez fosse possível, hipoteticamente, alguém agir de forma contrário ao que acredita, talvez pela própria segurança, como o apóstolo Pedro ao negar Jesus. Contudo, a fé conclama a ação, para ser aperfeiçoada. Não basta apenas orar para que o gigante caia, na segurança do nosso quarto, é necessário também ficar frente a frente com ele, por mas arriscado que seja. A obra é o espírito da fé, aquilo que lhe dá vida.
Notas.
[1] uso a palavra “sentimento”, na ausência de um termo melhor, no sentido de ser algo íntimo e não exterior.
Gostaria de recomendar meu livro, um romance emocionante e divertido com pano de fundo cristão, que aborda questões como relacionamento pais e filhos, primeiro amor e segundas chances.