
Um estudo sobre a necessária morte do “eu”
Já no fim do seu ministério, Jesus começou a explicar aos seus discípulos sobre a necessidade do seu sofrimento e morte. Foi um escândalo para os discípulos, especialmente para Pedro, que tentou dissuadi-lo da ideia. Jesus não apenas perseverou na sua missão, como também reconheceu o ardil de Satanás por trás do triunfalismo de Pedro. Então Jesus disse aos seus discípulos: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome [diariamente] a sua cruz e me siga”. Conforme veremos adiante, este é mais uma obrigação do que um convite, porque, segundo Jesus, aquele que não carrega sua cruz e não o segue não pode ser seu discípulo.
Não existe outro caminho para o discipulado, a não ser o caminho da autonegação e da cruz, porque este foi o caminho que Jesus trilhou, tendo sido recompensado após a morte. Enquanto viveu entre nós, ele doou a sua vida em prol das outras pessoas, e nos convida a fazer o mesmo. Ele deu a vida pelos pecados delas, e nós devemos dar a vida para que elas ouçam o evangelho e sejam salvas. Desta forma completamos em nosso corpo, o que resta das aflições de Cristo, em favor do seu corpo, que é a igreja. Esta é a nossa cruz; a nossa missão.
Jesus prosseguiu o seu ensino, sendo ainda mais direto: “Pois quem quiser salvar a sua vida [quem se recusar a negar-se a si mesmo, quem quiser ser poupado da cruz], a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa [e pelo evangelho (conforme Marcos)], a encontrará.” Aqui fica claro que o negar-se a si mesmo e tomar a cruz, da passagem anterior, significa perder a própria vida, no sentido de dedicá-la a uma causa: a causa de Cristo e do seu evangelho. Nesta passagem fica claro, também, que tomar a cruz não é apenas o caminho do discipulado, é o caminho da própria salvação, não sendo possível ser um cristão sem também ser um discípulo. O caminho da graça, portanto, inclui autonegação, inclui abrir mão dos nossos interesses, dos nossos sonhos e projetos, enfim, inclui o sacrifício da própria vida pela causa de Cristo.
O evangelista João — o discípulo do amor — vai um pouco mais fundo nesta questão, ao transmitir o mesmo ensinamento em outras palavras. “Aquele que ama a sua [própria] vida, a perderá” diz ele, “ao passo que aquele que odeia sua vida neste mundo, a conservará para a vida eterna.” Em sua forma de interpretar o ensino de Cristo, João vai ao âmago da questão, ao trocar a expressão “salvar a vida” por “amar a vida”, porque, no fim das contas, é o amor próprio que nos impede de abrir mão da nossa própria vida, de nos sacrificarmos pela causa de Cristo.
Não que exista um mal intrínseco no amor próprio. Pelo contrário, em outra passagem das escrituras, o apóstolo Pedro nos ensina a receita para amar a vida. Segundo ele, “quem quiser amar a vida e ver dias felizes, guarde a sua língua do mal e os seus lábios da falsidade.” O problema, portanto, não é amar a vida, é amar a vida mais do que a Cristo, pois, como disse Jesus: “Se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo.”
Eis o caminho do discipulado: amar a Cristo acima de todas as coisas, inclusive acima das coisas que mais amamos nesta vida (pais, esposa, filhos e a nós mesmos). É absolutamente impossível para qualquer pessoa ser um discípulo de Jesus, sem amá-lo com tal intensidade. Esta é uma verdade a respeito dos primeiros discípulos que morreram martirizados; é a verdade a respeito de todos os mártires que vieram depois — os quais, diante da morte, não amaram a própria vida — ; mas é também verdade a nosso respeito, porque carregar a cruz não é necessariamente um chamado ao martírio, mas sim um chamado a sacrificar a nossa própria vida [abdicar dos nossos interesses] pela causa do evangelho.
Na verdade, existe uma razão bem prática, porque esta qualidade de amor é necessária: é porque, como disse Jesus,“qualquer de vocês que não renunciar a tudo o que possui não pode ser meu discípulo.” Na forma positiva, temos o seguinte: ser um discípulo de Jesus implica na renúncia necessária de todas as nossas posses, o que é absolutamente impossível, a menos que o amemos o suficiente para fazê-lo, de modo que, quanto mais posses você tiver, mais difícil será renunciar a tudo, para seguir a Jesus. Quanto mais apegado você for à sua vida, à sua família, ao seu dinheiro, aos seus sonhos, aos seus projetos pessoais, mais difícil será seguir a Jesus. A bem da verdade, é absolutamente impossível para qualquer um de nós seguirmos a Jesus, a menos que haja uma intervenção divina, levada a efeito pela ação do Espírito Santo nos nossos corações.
Voltemos ao texto de João: “Aquele que ama a sua [própria] vida, a perderá, ao passo que aquele que odeia sua vida neste mundo, a conservará para a vida eterna.” Segundo o evangelho de João, o caminho da salvação e da vida eterna passa por odiar a nossa vida neste mundo. Não significa apenas odiar o pecado, mas menosprezar a nossa vida aqui, no sentido de renunciar a ela; no sentido de morrer para nós mesmos, e viver para Deus; no sentido de não buscar os nossos próprios interesses, mas buscar os interesses de Deus; e no sentido de abrir mão dos nossos sonhos e projetos de vida, em prol da causa de Cristo e da pregação do evangelho.
De certa forma, seguir a Cristo implica numa troca. Trocamos a nossa vida aqui, em prol da vida eterna. E por que devemos fazê-lo? Porque abdicaríamos dos nossos sonhos, para abraçar os sonhos de Deus, a ponto de torná-los nossos também? É porque a vida nesta terra está tão condenada quanto o Titanic, quando bateu naquele iceberg. O próprio engenheiro do navio concluiu que o navio afundaria, e não havia dúvidas quanto a isso. Ele previu que eles tinham por volta de uma hora, antes que o gigante deslizasse para as profundezas do Atlântico. Quando perceberam que o navio estava condenado, eles não perderam tempo tentando consertá-lo. Eles se concentraram em salvar o máximo de pessoas que conseguissem.
O mundo em que vivemos também é um navio condenado. Nós também estamos vivendo a última hora. O apóstolo Pedro escreveu que do mesmo modo que pela palavra de Deus existem céus e terra, pela mesma palavra os céus e a terra que agora existem estão reservadas para o fogo, guardada para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios. Jesus não veio para salvar o navio, ele veio para salvar as pessoas. “O meu reino não é deste mundo”, disse ele. “Visto que tudo será assim desfeito”, pergunta o apóstolo. “Que tipo de pessoas é necessário que vocês sejam?”
Esta é uma pergunta de uma profundidade tremenda, porque nos convida a olhar para a nossa vida da perspectiva correta. Visto que tudo será assim desfeito, visto que Jesus está voltando, visto que o tempo é curto, visto que as pessoas estão morrendo sem Deus, que tipo de pessoa é necessário que nós sejamos? Que tipo de vida é necessário que nós vivamos? Quais devem ser nossos objetivos nesta vida?
Enquanto muitos “cristãos” modernos se preocupam em viver bem no navio, enquanto ele não afunda, o Senhor Jesus nos convida, na sua palavra, a abrir mão da nossa vida nesta terra condenada, para dedicá-la a salvar o máximo de vidas que conseguirmos, porque pessoas estão morrendo sem salvação, enquanto vivemos como se o navio não fosse afundar. “Pois, que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma [a vida eterna]?”, disse Jesus na sequência do seu ensino sobre perder a vida.
“Pois o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então recompensará a cada um de acordo com o que tenha feito. Garanto-lhes que alguns dos que aqui se acham não experimentarão a morte antes de verem o Filho do homem vindo em seu Reino.” Enquanto os teólogos se preocupam em descobrir o que Jesus quis dizer com esta última frase, eu sou mais interessado em como os discípulos receberam o que Jesus disse. Obviamente — e com isto concordam os comentaristas — os discípulos passaram a crer que Jesus voltaria na geração deles, mesmo que não tenha sido necessariamente o que Jesus quis dizer. Este é o ponto. Enquanto não crermos na volta iminente de Cristo, enquanto não crermos no naufrágio imediato do Titanic, continuaremos nos dedicando a nós mesmos, porque a causa de Cristo pode esperar.
Esta morte do “eu” talvez seja a lição mais difícil de ser aprendida para o cristão, mas é um aprendizado necessário, pois, como disse Jesus, “se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas se morrer, dará muito fruto.” Se ainda não estamos dando frutos, é obviamente porque ainda não morremos. As pessoas não darão ouvidos à nossa palavra, enquanto não virem o quanto nos sacrificamos por elas. Eu estaria mais disposto a ouvir alguém que foi encarcerado, açoitado, apedrejado e sofreu naufrágios para que eu possa ouvir o evangelho, do que alguém que mal para para falar comigo, de tão preocupado que está consigo mesmo. Eu pensaria comigo: “bem, se ela passou por tudo isso para que eu ouvisse as boas novas, então deve valer a pena. Eu estaria disposto a ouvir as coisas mais duras da boca desta pessoa, do que as mais agradáveis da boca do outro sujeito.
A nossa cruz revela duas coisas: 1) a importância do que temos a dizer; e 2) o quanto nos preocupamos com as pessoas. A cruz é a expressão do nosso amor. A cruz é o plano mestre de Deus. A cruz fala mais do que palavras.
Morrer nunca é fácil. O próprio Jesus ficou perturbado, diante da morte, mas foi até o fim, e nós devemos fazer o mesmo. “Agora meu coração está perturbado”, disse ele “e o que direi? Pai, salva-me desta hora? Não; eu vim exatamente para isto, para esta hora. Pai, glorifica o teu nome!” Não é fácil também para nós, mas o Espírito nos impulsiona a: mais cedo ou mais tarde, abrir mão das nossas vidas, dos nossos projetos pessoais, em prol do Reino de Deus e da pregação do evangelho; a investir as nossas posses, recursos, nossa formação acadêmica, em prol do Reino de Deus; a questão não é mais realizar os nossos sonhos, mas sonhar os sonhos de Deus.
Quando a hora do sacrifício chegar — e vai chegar — que possamos dizer como Jesus:
Pai, glorifica o teu nome!
Gostaria de recomendar meu livro, um romance emocionante e divertido com pano de fundo cristão, que aborda questões como relacionamento pais e filhos, primeiro amor e segundas chances.